sexta-feira, 3 de abril de 2009

Linda de Suzi

Deolinda da Conceição nasceu em Arraiolos, em 1951, tirada das entranhas de sua mãe pelas mãos de sua avó Consuelo – a parteira de Arraiolos. Linda foi um parto difícil. Consta que queria usar o cordão umbilical como estola, mas a intenção foi-lhe boicotada por Consuelo. Linda deve a vida àquela avó e, talvez por isso, sempre se tenha sentido tão ligada a ela. Aliás, dizia-se na terra que Linda era mais filha da sua avó do que da sua mãe. Da mãe Luzia, apenas herdara o tom de pele curtido e o cabelo negro. E do pai António, os olhos castanhos. Só o tom. Porque o brilho do olhar, esse, era todo da avó. Assim como o resto de Linda – a desenvoltura, a sensualidade latina, a vaidade, a irrequietude, a resposta pronta na ponta da língua, a desfaçatez. Nem um traço da timidez e recato de sua mãe ou da sobriedade de seu pai. Os modestos agricultores não podiam ter tido colheita mais díspar que aquela. Espalhafatosa, como a avó Consuelo.

Os serões preferidos de Linda eram passados a experimentar as roupas exuberantes que a avó guardava entre bolas de naftalina ou a ouvir histórias de um passado fascinante deixado em Espanha. Consuelo, una bailarina de flamenco con una carrera extensíssima en los mejores tablaos flamencos de los cafés cantantes andaluzes... abandonara o estrelato por amor a um arraiolense. Casara no Alentejo, deixando em Espanha um passado glorioso.

Diz-se que Linda aprendeu o flamenco com a sua avó, antes mesmo de dar os primeiros passos. E com coisa de 3 anos e pico já animava os bailaricos de Arraiolos e arredores, pisando destemida os palcos das associações recreativas e das cooperativas. A catraia de cabelo apanhado, vestido aos folhos e castanholas na mão figurava nos cartazes como Consuelita, a espanholita de Arraiolos. Sempre acompanhada e dirigida pela sua avó, claro. Já os pais de Linda não se entusiasmavam tanto com a veia artística da filha. Consideravam tudo aquilo um encantamento próprio da idade.

Mas o encantamento não passou com o andar da idade. Adormeceu apenas, logo depois da morte da avó. Aos 13 anos, Linda deixou a terra-natal e partiu para Lisboa, sozinha. Trabalhou como criada na casa de uma família abastada até aos 17 anos, altura em que engravidou de um militar e se viu obrigada a casar antes de a barriga crescer. Com uma filha recém-nascida nos braços, Linda perdeu o marido para o Ultramar e não teve outro remédio senão voltar a trabalhar como criada. Desta vez, e viúva aos 19 anos, Linda arranjou biscate em casa de um simpático casal inglês – Suzi e Paul – que acolheram Linda e a filha como se fossem da família.

A criada do casal inglês conformava-se com o único ofício que julgava saber capaz de fazer, até ao dia em que remexeu nas coisas do passado e encontrou numa caixa as lantejoulas gastas dos seus tempos de Consuelita. O bichinho voltou. Linda queria pisar um palco novamente e decidiu procurar alguém que a ajudasse a recomeçar a carreira interrompida. Calcorreou Lisboa e a persistência valeu-lhe umas quantas actuações em bairros típicos da cidade, por ocasião dos santos populares. Linda, vestida a rigor, dançava o flamenco e interpretava algumas das canções populares portuguesas mais conhecidas. Ao "São João Bonito" acrescentava sempre um sotaque castelhano que fazia sucesso. Era a cantar que Linda arrancava mais aplausos ao público e foi nas cantigas que decidiu apostar. Uns meses depois, escreveu e cantou o seu primeiro e único êxito – “Suzi” – uma cantiga dedicada à patroa inglesa. Sempre que anunciava a canção em palco, Linda dizia: “À Suzi, por criar a minha filha, enquanto eu tento criar o meu sonho”. O êxito da música foi tanto que Linda foi baptizada pelo público como “Linda de Suzi”. E foi com esse nome artístico que deu espectáculos por todo o país.

Quase 35 anos depois de ter descido dos palcos, Linda ainda usa o seu nome artístico e ainda se acha uma grande estrela da música ligeira portuguesa. Todos os dias se veste, penteia e maquilha como se fosse actuar. Porque, como costuma dizer, “não há palco como a vida”. E, por isso mesmo, Linda não descura a sua imagem. Usa sempre acessórios ligados ao flamenco ou às sevilhanas – travessões no cabelo, leques, blusas de cores garridas e muitos folhos. Algumas das coisas que usa pertenceram à avó, outras comprou em lojas dos trezentos e, mais recentemente, nos chineses. Linda nunca foi a Espanha. Adora os tamancos da comadre Pomba e, às vezes, furtivamente, coloca-os nos pés. Está sempre a cantar. Não tem má voz, mas com a idade foi adquirindo “voz de bagaço” e torna-se doloroso ouvi-la, depois de algum tempo. Ainda por cima, Linda tem uma mania irritante: pega nas palavras que surgem em conversa e cantarola musiquinhas a partir delas. As comadres vão aos arames. Linda é fã incondicional de Tony Carreira, Nel Monteiro e Marco Paulo. Adora todos os outros similares – Ágata, duo Broa de Mel, Emanuel, Toy e afins. Só não acha grande piada ao José Cid. Consta que com ele teve um romance mal resolvido numa cabana junto a praia. Quem o diz é a própria Linda, que jura a pés juntos ser a musa do tema vencedor do festival RTP da Canção de 1980 – “um grande, grande amor” - e do tema “Portuguesa Bonita”.

Linda não trabalha. Como herdou a fortuna dos seus ex-patrões ingleses – e só em Vinho do Porto tem para ali uma data de dinheiro – deixou de trabalhar há mais de trinta anos. Pode dar-se ao luxo de cultivar o ócio diariamente, na companhia das suas comadres, com quem partilha mexericos e trabalhos manuais. Enganem-se se julgam que a alentejana de Arraiolos tem jeito para os famosos tapetes. Nunca aprendeu a arte, nem nunca quis – estava demasiado entretida com as castanholas. Actualmente, prefere tricotar o enxoval para a filha – uma quarentona encalhada, para desespero de Linda – e pecinhas de lã de cores neutras para o neto que ainda acredita vir a ter. Entre as restantes comadres paira a dúvida se a filha de Linda não terá outras orientações sexuais - a comadre Pomba até já viu nas cartas outra mulher na vida da pobre - mas o assunto morre na presença de Linda.

As conversas entre comadres funcionam para Linda como uma espécie de Jardim das Estrelas do Júlio Isidro – folclore, gastronomia e cantigas. Não há dia em que Linda não relembre os seus dias de glória. Vive presa a um passado que poderia ter tido e não teve. Tal como a sua avó Consuelo (presença assídua nas conversas das Comadres, ora em moldura, ora num fio porta-retratos que Linda usa ao pescoço).

4 comentários:

  1. Eu disse que a minha Linda era grande. Desculpem a tomada descarada de tanto espaço, mas habituem-se, comadres. É que a Linda é mesmo assim :)

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  2. :)))))))

    Fiz alguns abdominais a rir, ADOREI, Consoelita - a espanholita de Arraiolos!

    Comadre, és grande e já agora vê lá se me arranjas uma de Porto que ando com a garganta seca............PAUSA.................(por causa do tabaco)

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  3. Qual grande, está brilhante Susana! Perdão, Linda de Suzi. :) Adorei! (sou uma das que pôs "interessante e fantástico" ora pois) eh eh eh

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